AQUISIÇÃO DE IMÓVEL: ESCRITURA E REGISTRO

É certo que, em se tratando de aquisição de imóvel, é do senso comum que “quem não registra, não é dono”. Será mesmo assim??

Pois bem, vejo necessário, para entendermos esta questão, fazermos um breve retrospecto da legislação acerca da transmissão da propriedade imobiliária

É cediço que a propriedade imobiliária, após a Revolução Francesa alcançou o seu fortalecimento máximo. Houve uma proteção maior nos contornos de formação do domínio imobiliário.

Nesse sentido leciona Fábio Caldas de Araújo:

O poder da burguesia dependeria essencialmente da proteção efetiva sobre os bens de raiz e a acumulação patrimonial exigia meios céleres e seguros para a transmissão dos bens móveis. Neste ponto observa-se a adoção paulatina da transmissão da propriedade móvel pela mera tradição e o fortalecimento da regra de Bourjon, que alcançaria a codificação brasileira apenas no ano de 2002 e ainda sob condição. O mesmo não pode ser dito da legislação portuguesa, que não recepcionou a regra de Bourjon mesmo após a codificação de 1966.

No Brasil, a primeira modalidade de registro nasceu com a Lei Hipotecária nº 1.237/1864, que foi criada como forma de expandir o crédito no Brasil Imperial, pois os credores precisavam ter certeza sobre a efetividade da garantia que recaia sobre imóveis, razão pela qual foi adotada em nosso sistema, e para evitar o regime de múltiplas transmissões a lei criou o princípio da prioridade, o qual protege aquele que fizesse o primeiro registro.

Nesse sentido calha registrar os ensinamentos de Fábio Caldas de Araújo:

No direito brasileiro, o sistema de transmissão da propriedade anterior ao
primeiro Código Civil de 1916 seguia o modelo romano quanto à necessidade
de demonstração do título e do modo de aquisição, o qual foi recepcionado pelas
ordenações. A transmissão dependeria da conclusão de um negócio jurídico
válido, como a compra e venda, no qual seria suficiente o acordo de vontades das
partes e da obediência de formalidade legal para valores acima de determinada
alçada.
Acontece que no direito romano, e mesmo no período de vigência das ordenações, nunca houve a instituição da obrigatoriedade de qualquer forma de registro da propriedade ou mesmo da posse para fins de constituição de direito real ou
mesmo de publicidade sobre o bem imóvel. Esta situação criou em nosso sistema
a necessidade de uma dupla operação jurídica para a transmissão da propriedade.
A consumação da alienação pela transmissão consensual seria insuficiente para a
transferência do domínio que dependeria da tradição.

A origem referente ao sistema tabular é creditada ao sistema germânico. O
sistema romano e canônico não são fontes da existência do modelo tabular hodierno. A antiguidade forneceu traços do princípio da publicidade como elemento
essencial que garantiria a identificação social da titularidade da propriedade perante os seus membros. Em grande parte dos povos da antiguidade, o regime de
propriedade era coletivo, o que exigia a transmissão do bem de modo simbólico
perante assembleias, ou praças públicas, como meio de legitimar socialmente o do
ato de alienação.

O modelo registral brasileiro possui influência nitidamente germânica; ao inverso do modelo português, que possui inspiração francesa.

O direito medieval delineava o sistema francês, antes da codificação, para o regime registral constitutivo, isto é, para considerar o registro como forma essencial para surgimento do direito real. O direito francês sistematizou o regime de transmissão da propriedade imobiliária por meio do nantissement e apropriance.

O sistema nantissement consistia no ato de autorização do vendedor para imissão na posse do bem, mediante ordem judicial. A imissão na posse dependia da apresentação dos documentos que comprovassem a alienação e que deveria ter natureza pública. O documento particular passava pelo crivo e ratificação do juiz, e após era inscrito no registro da chancelaria da Corte para fins de publicidade e especialidade. 

O sistema apropriance conferia absoluta segurança ao adquirente. O procedimento era complexo e exigia a publicação de editais para resguardar o direito do adquirente, e findo o prazo o proprietário estaria a salvo de quaisquer vícios ou gravames. Tal sistema se assemelha ao registro torrens.

Ocorre que tais sistemas sofreram alterações com a revolução francesa, que através de um decreto do ano 1790 criou o regime da transcripção. Posteriormente o decreto foi revogado. O Código Civil francês de 1804 fundiu a duplicidade oriunda do direito romano, que exigia a confecção do título (contrato) e o modo de aquisição (tradição) para perfectibilizar o ato de transferência.

Acerca do assunto pontua Fábio Caldas de Araújo:

… Por meio do Decreto n°55-22, de 4 de janeiro de 1955, o registro predial
foi reestruturado, mas com manutenção de sua característica essencial: o registro
de imóveis no sistema francês tem natureza pessoal e declarativa. A reforma de
1955 introduziu um indicador real, ou seja, além das informações sobre o alienante e o comprador, o cadastro imobiliário é acompanhado de uma ficha sobre o bem (fichier immobilier). Todavia, esta ficha não visa a assegurar a exatidão dos dados sore o imóvel prepondera nele a função administrativa e fiscal. Isso significa que o registro não é constitutivo, mas meramente enunciativo e possui relevância para impedir a oposição do negócio em relação a terceiros.

O sistema francês exerceu forte influência na formação do sistema registral português, ao passo que o sistema registral brasileiro sofreu influência do sistema alemão, porém não tem base essencialmente germânica.

O código Prussiano de 1794 instituiu a tradição como forma de aquisição da propriedade. Esse sistema favoreceu o adquirente, protegendo-o do proprietário quando efetivado o registro. Posteriormente, com a publicação do Código BGB, criou-se o cadastro real com divisão territorial. Diferentemente do sistema francês que tinha base no cadastro pessoal, o alemão estabeleceu rígida formação da matrícula do imóvel. 

Imperioso nos valermos dos ensinamentos de Fábio Caldas de Araújo:

O Código Civil Alemão construiu o sistema de transmissão da propriedade dentro de um regime diverso daquele que marcou o direito romano. A doutrina procura diferenciar os sistemas de transmissão da propriedade em três grupos: a) sistemas puramente causais (proeminência do título): b) sistemas modais (proeminência do modo); e c) sistemas mistos (combinação do título e modo) para a aquisição da propriedade.

O sistema alemão se afastou do modelo romano e optou pelo sistema modo, no qual o registro de imóveis assume caráter constitutivo. E mais, no sistema alemão prepondera o princípio da abstração que confere imunidade ao registro em relação à causa obrigacional de sua formação. A abstração é uma decorrência natural naquele sistema que realiza a separação entre o plano negocial e o registral.

O sistema registral português sofreu influência do direito francês na sua formação. Mesmo com a evolução, não se permite que seja conferido caráter constitutivo. O sistema enunciativo e de mera publicidade é o que informa a natureza jurídica deste sistema, que está consagrado no art. 1º do CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (DL 224/1984):

Fins do registo

Artigo 1.º. O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. 

Neste ponto, Fábio Caldas de Araújo assevera que:

Como já referenciado, o DL. 224/84 tornou clara facultatividade do registro no direito português. A adoção desta solução não desconsidera a importância do registro, mas seu caráter enunciativo. A transmissão da propriedade não depende do registro para o seu aperfeiçoamento. Por sua vez, a finalidade do registro é a garantia do tráfico negocial, consequentemente, que exige a boa-fé por parte daquele que confia na fé pública. A garantia da fé pública não é possível sem que a posição jurídica do transmitente não esteja refletida no registro. Por isso afirmamos que, muito embora o regime do direito português seja facultativo, existe uma obrigatoriedade indireta. 

No Brasil, o regime de concessão de terras aos particulares pelas Sesmarias permaneceu vigente desde a descoberta até a independência em 1822. A partir daí temos uma lacuna na legislação até a edição da Lei de Terras em 1850.

Cito os ensinamentos de Fábio Caldas de Araújo:

Como afirmado, o registro determinado pela lei teria função meramente declaratória e o registro torrens seria a primeira tentativa séria de impor um cadastro obrigatório e organizado sobre as terras públicas, pois sem a demonstração da origem do título não seria possível o registro.

A aquisição da propriedade no direito brasileiro seguia o modelo romano pelo qual a tradição era representada pelo modus e pelo titulus. A transmissão da propriedade imóvel por um dos meios lícitos e com justa causa atendia aos requisitos exigidos para que a propriedade fosse consolidada. A compra e venda e a doação eram causas lícitas e que podiam ser alvo de tradição real ou ficta. Por sua vez, a tradição física para bens imóveis acaba sendo espiritualizada pela inserção da cláusula constituti, por meio da qual o comprador passa a possuir em nome do vendedor sem alteração no mundo físico. O elemento dual, titulus e modus, embora jurídica e mentalmente diverso, perde sua feição material e objetiva

No direito italiano o registro é considerado formalidade para dar publicidade e não meio de aquisição da propriedade:

A função essencial do registro é tornar público todos os atos que em geral dizem respeito à propriedade fundiária quer impliquem alienação do domínio ou sua limitação por efeito da constituição de direitos reais fracionários, quer produzam uma diminuição no direito de gozo dos imóveis ou uma limitação à capacidade de dispor deles.

c) Efeitos do registro. Porque o registro não é um modo de aquisição, mas só uma formalidade essencial para a publicidade de aquisição, não tem o fim de fornecer a posse da transferência realizada, nem o de conferir validade ao ato que fosse eventualmente nulo por vícios de forma ou de substância, mas apenas o de dar eficácia ao ato com relação a terceiros. 

Então, feitas estas dicreções, é possível afirmar que a opção por determinado sistema não é baseado na certeza jurídica quanto à forma da transmissão da propriedade imobiliária, mas decorre da origem. Portanto, nem sempre o sistema, ainda que haja previsão legal conseguirá prever as situações da vida cotidiana.

Nosso sistema registral, com pé no Alemão, adotou o sistema misto, mas me parece que de forma distorcida, pois na verdade o registro é considerado pelo CCB (1.245) como meio de aquisição da propriedade. Posso estar equivocado, mas não entendo assim, pois acredito que a transferência se dá com a escritura e não com o registro, sendo este apenas para efeito de publicidade e proteção de terceiro. Tanto que o registro da escritura não altera a data da aquisição, pois ainda que registrada anos depois, o comprador é dono desde a escritura, inclusive a partir desta não pode mais o vendedor praticar qualquer ato possessório ou de direito real.

Portanto, smj, entendo que a exigência do registro da escritura ou contrato de compra e venda não é meio de efetivação da transmissão do domínio, mas sim forma de dar publicidade e garantias ao terceiro de boa-fé, pois na verdade o domínio se transmite com a escritura pública de compra e venda, doação etc., e com o contrato particular de compra e venda para imóveis com valor de até 30 salários mínimos [Art. 108 do Código Civil].

Dito isto, infere-se que a ausência de registro somente é oponível ao terceiro de boa-fé que tenha relação jurídica com o imóvel, inclusive o STJ editou a súmula 84, ou seja, o terceiro que não tenha relação jurídica contratual com este imóvel não pode, por exemplo, ter direito a uma penhora do imóvel por dívida do vendedor pelo simples fato da ausência do registro, pois este não transfere o domínio, mas apenas dá publicidade, vez que a transmissão do domínio opera com a escritura pública ou contrato de compra e venda.

A transmissão da propriedade se opera, inegavelmente, com a celebração da escritura de compra e venda ou contrato (este para imóveis até 30 SM). Tanto que a partir desse momento o vendedor perde todos os direitos sobre a propriedade, pois não poderá mais usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, sendo que tais direitos passam para o adquirente, independentemente de registro, sendo este uma forma de publicação do ato de compra e venda para ter efeitos contra terceiros de boa-fé.

A regra do art. 1.245 do CC nos parece não ser absoluta e comporta temperamentos. 

O Ministro Bueno de Souza do STJ ao julgar o RECURSO ESPECIAL N. 188-PR que deu origem à súmula 84, assim manifestou:

O saudoso Ministro Amaral Santos, com sua autoridade de consagrado processualista, também deixou clara sua posição, no relatório do RE n. 71.162- GB, em 12 de outubro de 1971 (RTJ 60/494). Na ementa do aresto da Primeira Turma, unânime, consta este resumo: 

Ação executiva. Penhora de bem vendido por um dos executados a terceiro, que, embora na posse da escritura definitiva de compra e venda, não fizera a sua transcrição. 

I – Os embargos de terceiro são admitidos não apenas para a proteção simultânea do domínio e da posse, como no direito anterior, mas também para a defesa da simples posse.

E a egrégia Primeira Turma, no RE n. 87.958-RS (RTJ 91/257), sendo Relator o Ministro Cunha Peixoto, em 24 de novembro de 1977, assim decidiu, à unanimidade: 

Embargos de terceiro senhor e possuidor. Sua procedência nos termos do art. 1.046 do Código de Processo Civil. 

A falta de registro da promessa de compra e venda não obsta a procedência dos embargos, eis que, para se opor ao ato de penhora, basta a qualidade de mero possuidor

No RE n. 76.769, de 1973 o Sr. Ministro Rodrigues Alckmin, em voto de vista, lembrou trecho de despacho seu, que o Sr. Ministro Ribeiro da Costa transcrevera no Ag nº. 28.756, nesses termos:

Inegável é o cabimento de embargos de terceiro por parte do promitente comprador, para evitar que o imóvel prometido à venda sem cláusula de arrependimento possa ser penhorado e levado à praça para pagamento de dívida do promitente vendedor. Inegável, porque os embargos de terceiro protegem não apenas o domínio, mas também a posse e mesmo direitos obrigacionais (v. Lopes da Costa, “Direito Processual Civil Brasileiro”, 4, 254; Pontes de Miranda, “Comentários ao Código de Processo Civil”, ed. 1949, IV/206). Conseqüentemente, bastava a prova do direito obrigacional anterior à penhora para que os embargos de terceiro pudessem ser acolhidos.

No mesmo caso, argumentou o Ministro Athos Carneiro:

Sabemos que no nosso país, principalmente nas camadas pobres da população, um grande número de negócios, e até direi, a maior parte dos negócios, é efetuada de maneira menos formal, e até absolutamente informal. Compram-se e vendem-se pequenos terrenos e casas apenas mediante a emissão de recibos, sinais de arras e mesmo de promessas de compra-e-venda ou “transferências de posse” redigidos de forma a mais singela. E é muitíssimo comum que esses documentos não venham a ser registrados no Registro de Imóveis, inclusive porque os termos em que estão vazados não permitiriam o registro. Para o registro imobiliário é necessário que o contrato revista determinados requisitos, o que exige, freqüentemente, a presença do tabelião ou do profissional do Direito.

Na minha compreensão, extrai-se dos julgados, que o título particular sem registro pode ser utilizado para proteção da propriedade, o que demonstra que o registro não é meio constitutivo da propriedade.

Vejamos a seguinte situação: A vendeu imóvel para B, que não registrou a escritura. C ajuíza ação de usucapião contra A porque ainda consta no registro imobiliário. Depois de citado A, a escritura vem a ser registrada. Então, B não passou a ser dono somente com o registro, mas sim a partir da escritura, ou seja, o que gera a transferência é a escritura. Inclusive este é um caso que entendo deva ocorrer alteração do polo passivo da ação mesmo depois da estabilização da demanda, pois deve figurar na ação de usucapião o proprietário/adquirente. 

Outra situação que parece demonstrar que a aquisição se dá com a escritura/contrato, é a seguinte: A possui o imóvel com animus de dono, e sabe que o imóvel foi alienado de B para C antes mesmo da posse de A, mas a escritura nunca foi levada a registro.  Ora, sendo A sabedor desta situação, deve ajuizar ação de usucapião contra C, mesmo o imóvel estando ainda registrado em nome de B, porque este (B) não detém mais quaisquer poderes sobre imóvel (usar, gozar, dispor etc.), inclusive não poderá sequer fazer acordo em eventual audiência, igualmente não pode reconhecer a procedência do pedido porque é parte ilegítima para isso.

Verifica-se que o sistema registral brasileiro fundado no brocardo “quem não registra, não é dono” não decorre pura e simplesmente da vida prática, mas sim de influência de outros sistemas, o que possibilita dizer que nem sempre coincidirá com a vida cotidiana, de modo que, quando houver um caso específico, deverá o magistrado aplicar ao caso a solução que apresenta justiça, e não aplicação pura e simples da lei. Nesse sentido cito o Ministro Fontes de Alencar ao julgar o RECURSO ESPECIAL N. 188-PR: Sr. Presidente, tenho como ajustada à boa realização da justiça a posição do eminente Ministro Athos Carneiro. Afinal, não estamos a julgar pedras, mas a apreciar fatos que envolvem a conduta humana, envolvem o homem com todas as suas circunstâncias.

Palmas/TO, 26/04/21.

Márcio GonçalvesAdvogado. Palestrante. Professor de Pós-graduação. Juiz Eleitoral Substituto do TRE/TO. Membro da Academia Palmense de Letras-APL. Graduado em Direito pela Fundação Universidade Federal do Tocantins (2003). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Pós-graduado em Direito Processual Civil (Unisul). Pós-graduado em Direito Eleitoral (Unitins). Especialista em direito: imobiliário, Municipal e agrário. www.marciogoncalvesadvocacia.adv.br | margonmor@hotmail.com